Você joga porque gosta ou porque não suporta o mundo lá fora?
- Pedro Gatti Lima
- há 4 dias
- 3 min de leitura

“Durante muito tempo, meu mundo cabia dentro de uma tela.”
Sair na rua era uma tortura. A simples ideia de cruzar com alguém no corredor já me deixava em alerta. O coração acelerava, as mãos suavam, e eu ensaiava mentalmente o que dizer — mesmo que fosse só um “bom dia”.
Eu me sentia observado o tempo inteiro. Como se qualquer palavra errada, qualquer gesto fora do lugar, fosse motivo de julgamento. Às vezes, bastava o som do interfone ou um carro buzinando para meu corpo entrar em colapso.
Então eu evitava. Evitava tudo: a rua, os amigos, os convites. Me trancava no quarto e abria o jogo.
Ali, atrás da tela, eu era alguém. Ninguém via meu rosto, minha insegurança. No jogo, eu era útil. Fazia parte de um grupo, tinha uma função, era respeitado. Podia falar, e até fazer amigos — sem precisar mostrar quem eu era “de verdade”.
O mundo real era ruidoso, invasivo. As pessoas falavam alto, invadiam espaços, queriam respostas. Vinham com seus cheiros fortes — de perfume, de suor, de cigarro — e com exigências emocionais que me sobrecarregavam. Queriam minha atenção para dores que eu não conseguia suportar: pobreza, desigualdade, violência. Eu só queria desaparecer um pouco.
E os jogos me davam esse direito: o direito de ser invisível e, ao mesmo tempo, pertencente. De existir num mundo com regras claras, onde eu tinha valor.
O problema é que, aos poucos, fui desaparecendo da vida real. Perdi aniversários, saí da faculdade, deixei de responder mensagens. O mundo lá fora me assustava, e o mundo aqui dentro me anestesiava.
Demorou para eu entender que aquilo era mais do que “preguiça”. Era medo. Ansiedade social. E o jogo, por mais que acolhesse, também escondia.
Quando o jogo vira escudo — e prisão
A ansiedade social não é só timidez. É um medo profundo de ser observado,
julgado, exposto. Sair de casa pode parecer uma ameaça. Estar entre pessoas é como subir num palco sem roteiro.
As interações cotidianas ganham um peso insuportável. A mente antecipa falhas. O corpo trava. O mundo exige reações, empatia, engajamento — e tudo isso, por mais legítimo que seja, se torna demais para quem só está tentando sobreviver ao próprio dia.
É aí que os jogos online oferecem abrigo.
No ambiente virtual, há estrutura. Regras claras, papéis definidos, objetivos concretos. Diferente do mundo real, ali sabe-se como agir. A comunicação é filtrada. As relações, controladas. A distância protege.
Muitos encontram nos jogos conexão real. Pertencimento. Reconhecimento. Isso não é ilusão — é um vínculo. O problema começa quando essa se torna a única forma possível de estar com o outro.
Quando o refúgio deixa de ser abrigo

É preciso cuidado para não demonizar os jogos. Eles podem ser fontes legítimas de prazer, companhia e alívio. Mas, quando usados exclusivamente como fuga, correm o risco de paralisar a vida.
Isolamento, dificuldades de socialização, distúrbios do sono, abandono de compromissos — tudo isso pode surgir quando o jogo vira o único lugar habitável.
Não se trata mais de gostar de jogar. Trata-se de não suportar a realidade fora dele.
Um caminho possível
A saída não está em cortar os jogos à força ou forçar exposições abruptas. Isso só reforça o medo e o sentimento de inadequação.
O que ajuda é entender o que está por trás do sintoma. Psicoterapia pode ser esse espaço de escuta, onde o medo é reconhecido e a trajetória reescrita com cuidado.
Nesse processo, os jogos não precisam ser descartados — podem até ser usados terapeuticamente. Servem como espelho de dinâmicas internas, revelam funções sociais, papéis, medos e desejos. Através deles, é possível compreender os padrões de autoexclusão, o tipo de vínculo que se tolera e o que se evita.
O esconderijo pode, aos poucos, virar ponte.
Você não está sozinho
Se você se reconheceu nesse texto, saiba: isso não é fraqueza. É um pedido de cuidado. É o corpo dizendo que não dá mais para seguir no automático.
E tudo bem pedir ajuda.
Você não precisa abandonar os jogos. Mas talvez possa aprender a levar o que há de melhor neles para a vida real: a criatividade, a cooperação, a coragem de tentar — com pausas, com respirações, com menos medo de ser quem você é.
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